segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Escolher morrer



Holanda, Bélgica e Luxemburgo são países onde a eutanásia é uma prática legalmente autorizada. E importante salientar: não só em caso de doença terminal ou outra que provoque intensa dor física, não aplacável pela medicação, mas também nos casos em que o indivíduo experimenta um insuportável sofrimento psíquico. Na Suíça, muitos sabem, o suicídio assistido é permitido pelas autoridades já faz algum tempo (o que leva muita gente até lá para o chamado "turismo da morte"). Tudo isso, para mim, é mostra de avanço civilizatório. Mas por que estou falando desse assunto? Chego lá.

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Dias atrás, reli o romance (ou seria novela?) Mas não se mata cavalo?, do escritor norte-americano Horace McCoy*, lançado em 1935. O estilo do autor é conciso, direto, sem nenhum traço de ornamentação. A trama se passa no período da gravíssima depressão econômica decorrente do crack financeiro de 1929 e destaca dois personagens, Robert Syverten (o narrador da história) e Gloria Beatty. Ambos tentam a sorte em Hollywood, cuja indústria cinematográfica começava a ser engendrada. Ele sonhava em se tornar diretor de filmes; ela se contentaria até mesmo com uma vaga de extra. Para sobreviver, aceitam fazer parte de uma prova de resistência física e psicológica. Um concurso de dança - como as dance marathons, eventos que viraram febre nos EUA durante a terceira e a quarta décadas do século passado.

Espécie de proto-reality show, a maratona de dança exigia que os casais participantes ficassem horas e horas de pé dançando ou, na maior parte do tempo, apenas mexendo o corpo. Os intervalos para descansar, alimentar-se e ir ao banheiro eram exíguos. Ganhava o prêmio em dinheiro somente a dupla que conseguisse suportar o absurdo daquela situação até o final. Havia público para acompanhar o "espetáculo". Se fosse bem sucedido, um casal podia contar com um patrocinador, que fornecia calçados e vestuário mediante a colocação de um anúncio nas roupas. Para eliminar alguns pares de forma mais rápida e aumentar a competitividade (e os lucros), também aconteciam corridas dentro do salão do evento. Esgotados fisicamente, não era incomum que os participantes caíssem estrepitosamente durante esses derbys ou mesmo dormissem no ombro dos parceiros, nos momentos em que simulavam dançar (como na foto no alto da postagem).

Há uma cena que descreve bem o quão bizarro era tudo isso:

" - Olhem para esses jovens, senhoras e senhores! [diz Rocky, o mestre-de-cerimônias, engatando uma série de lorotas] Depois de 216 horas estão tão frescos como rosas, na maratona mundial de dança, uma competição de resistência e habilidade. Esses meninos são alimentados sete vezes por dia: três grandes refeições e quatro lanches leves. Alguns dos concorrentes chegaram até a aumentar de peso durante a competição... E eles têm doutores e enfermeiros que os atendem constantemente para fazer com que eles se mantenham nas melhores condições físicas. Agora vou chamar o par nº 4, Mario Patrone e Jackie Miller, para um número especial. Vamos. Par nº 4! Lá estão eles, senhoras e senhores. Não é um par alinhado? 
Mario Patrone, um italiano reforçado e Jackie Miller, uma lourinha, subiram para a plataforma para receberem aplausos. Falavam com Rocky e depois começavam a sapatear, mas muito mal. Nem Mario nem Jackie pareciam perceber que a coisa não prestava. Quando terminaram, algumas pessoas atiraram dinheiro na pista.
- Mais, minha gente! - gritou Rocky - Uma chuva de prata. Mais! 
Algumas moedas mais bateram no chão. Mario e Jackie apanharam-nas e depois caminharam na nossa direção".

O que julgo, entretanto, mais relevante nesse livro é a postura de Gloria Beatty diante da vida. Amarga e pessimista, a personagem diz a certa altura: "Como sou fracassada, tenho inveja de todos que fazem sucesso. Você também não é assim?" (este blogueiro admite que pelo menos ele é). Ela está sempre repetindo que preferiria não estar mais viva (e o impulso dramático da narrativa vem desse desejo de morte da personagem). E logo no início de Mas não se mata cavalo? encontra-se a sua declaração mais interessante:

" - Uma coisa que me intriga é que todo mundo se preocupa tanto com viver e tão pouco com morrer. Por que é que todos esses cientistas bambas sempre andam por aí tentando prolongar a vida em vez de achar um jeito agradável de acabar com ela? Deve haver um mundão de gente como eu neste mundo... gente que quer morrer mas que não tem coragem..."

Há pessoas ("um mundão de gente", certamente) para as quais viver é algo extremamente difícil. E não me refiro aqui apenas à dificuldade que elas possam ter para adquirir os meios de subsistência. Decidir morrer, contudo, também não é fácil (entre outros complicadores, há o medo ou receio da agonia e da dor física). Pessoalmente, acho que seria um passo ético importantíssimo para a humanidade começar a pensar no suicídio como um direito. E caso a decisão de dar fim à própria vida seja garantida legalmente num futuro longínquo (e, talvez, utópico) - não apenas por estar com alguma terrível enfermidade, como no caso da eutanásia, mencionada lá no início da postagem, mas por escolha autônoma e madura do indivíduo - seria ainda mais digno, penso eu, que se pudesse fazer isso de "um jeito agradável"; ou seja, com o mínimo de sofrimento possível, contando com o trabalho de "todos esses cientistas bambas".
 
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* McCOY, Horace. Mas não se mata cavalo?. São Paulo: Abril Cultural, 1982 [Tradução de Érico Veríssimo]

BG de Hoje

 Nutshell (ALICE IN CHAINS) é, na minha opinião, uma das canções mais tristes dentro do rock. Canta Layne Staley ao final, "if I can't be my own/I'd feel better dead".


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O racismo brasileiro e os números


De acordo com o comunicado do IPEA intitulado Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição (disponível aqui), as pessoas negras que fazem parte da população economicamente ativa "correspondem a 60,4% dos que ganham até 1 salário mínimo e a somente 21,7% dos que ganham mais de 10 salários mínimos. Entre os ocupados brancos, esses percentuais equivalem a 39,0% e 76,2%, respectivamente". Mais: negros são maioria entre os indivíduos sem ocupação; estão em menor número entre os trabalhadores com carteira assinada; e são minoria (26,2%) entre aqueles identificados como empregadores. A fonte principal do estudo foi a Pnad/IBGE de 2006

Apresentei esses dados apenas para dizer o seguinte: há uma extensa bibliografia - reunindo trabalhos organizados e publicados tanto por órgãos governamentais, quanto pelas universidades - constatando a grande desigualdade entre raças existente no Brasil. E é prova de ignorância ou má fé não reconhecer isso.

Entretanto, ainda persiste no país a manutenção do mito da "democracia racial" e a crença mal informada de que não se discrimina especificamente a população negra (e indígena, vale acrescentar), mas sim os pobres em geral (tanto brancos como não brancos).

Comecei a refletir com maior atenção sobre tudo isso ao reler Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil*, uma reunião de diversos pequenos artigos publicados pela filósofa Sueli Carneiro, em sua quase totalidade recolhidos da coluna que a autora manteve no jornal Correio Braziliense, no início da década passada.

Em Realidade estatística, Sueli Carneiro defende que as pesquisas que demonstram a desigualdade entre raças

"cada vez mais desautorizam as ideias consagradas em nossa sociedade sobre a inexistência de um problema racial. Questionam a simplificação de que o problema do Brasil é social, e não racial. Recusam os eufemismos como o do apartheid social e, sobretudo, indicam que as políticas universalistas, historicamente implementadas, não têm sido capazes de alterar o padrão de desigualdades entre negros e brancos na sociedade".

Para corrigir injustiças é necessário a adoção de medidas que atinjam o problema diretamente, sobretudo nas áreas da educação, trabalho e segurança pública. Contudo, acrescenta a filósofa neste mesmo artigo, as políticas públicas voltadas para a promoção da igualdade ficam presas, muitas vezes, num "vazio de implementação" que torna os problemas da população negra "uma abstração que jamais se consubstancia em realidade política. Constata-se a desigualdade, em alguns casos, lamenta-se. Mas parece não haver nada que se queira fazer em relação ao problema".

Noutro texto - Os negros e o Índice de Desenvolvimento Humano - Sueli Carneiro, ao comentar um estudo coordenado pelo economista Marcelo Paixão, considera que as políticas publicas voltadas para a melhoria dos indicadores sociais não podem negligenciar as desigualdades raciais fartamente demonstradas pelas pesquisas.

Esse trabalho coordenado pelo economista Marcelo Paixão utilizou os mesmos dados empregados no cálculo do IDH (expectativa de vida ao nascer, escolaridade e PIB per capita) para aplicá-los não a toda população conjuntamente, mas realizando nesta um recorte por raça. Chegou-se aos seguintes resultados

"é possível verificar que os afrodescendentes ocupam a 108ª posição no ranking proposto pelo Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], enquanto os brancos ocupam a 49ª posição. O Brasil, obedecendo ao mesmo ranking, ocupava a 74ª posição [na época da divulgação do trabalho, no ano 2000]

Não tenho razões para acreditar que essa realidade tenha se alterado significativamente, de forma positiva, nos últimos anos.

A luta contra o racismo, todos sabemos, não é fácil. Mas um dos meios para tentar vencê-la é combatendo a desinformação. Por isso, apresentar livros, estudos e pesquisas sobre o tema é indispensável para dar consistência maior à argumentação antirracista.

Na próxima postagem, destacarei uma passagem do livro Mas não se mata cavalo?, do escritor norte-americano Horace McCoy.

* CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011

BG de Hoje

Hoje, infelizmente, não tem BG (motivo: péssima conexão com a internet)