* Um dos pontos da tese do Rato, protagonista do romance Simpatia pelo demônio, de Bernardo CARVALHO (Editora Companhia das Letras, 2016 - p. 31-32)
quinta-feira, 15 de maio de 2025
Falou e disse...
"Como num círculo vicioso, havia sempre um momento em que o pensamento civilizatório sucumbia a um processo entrópico, bombardeado em seus pontos mais frágeis, em suas dúvidas e contradições, e já não conseguia reagir às crises. Nesse momento, a violência tomava a dianteira como única resposta possível. E, para defender a fragilidade da nação, passavam a recorrer a expedientes típicos de regimes fascistas. O mesmo raciocínio podia ser aplicado a situações mais simples, circunscritas a universos particulares que serviam de microcosmos. O fundamental, em todo caso, é que havia sempre um momento em que a razão fraquejava e desmoronava, bombardeada por todos os lados no que tinha de mais acabado: a dúvida, a reflexão, a hesitação. Nesses momentos críticos, a razão deixava de dar conta das contradições que trazia em si e que tinham se tornado cada vez mais visíveis e evidentes conforme ela também se aprimorava e se afastava da barbárie, até ficar totalmente vulnerável ao oportunismo da brutalidade e às investidas das imposturas, dos sofismas e da burrice, como um corpo indefeso de tão puro. Na barbárie, não há dúvida nem hesitação, segue-se o caminho mais curto". *
terça-feira, 6 de maio de 2025
Deslocados no mundo
Em entrevista ao site de notícias Daily Beast, publicada numa versão condensada em 8 de janeiro de 2016, o ator mexicano Gael Garcia Bernal, na época preocupado com a possibilidade de Donald Trump ser eleito presidente dos EUA, deixou sua opinião sobre o impulso que leva seres humanos a buscar outros lugares onde viver:
"Migration is as natural as breathing, as eating, as sleeping. It is part of life, part of nature. So we have to find a way of establishing a proper kind of scenario for modern migration to exist. And when I say 'we,' I mean the world. We need to find ways of making that migration not forced". [tradução aproximada: "Migração é tão natural quanto respirar, quanto comer, quanto dormir. É parte da vida, parte da natureza. Então nós temos que encontrar um modo de estabelecer um tipo de cenário apropriado para a migração moderna existir. E quando eu digo 'nós', quero dizer o mundo. Nós precisamos encontrar modos de fazer essa migração não forçada"]
O entrevistador havia perguntado por que, na opinião do artista, seria importante contar a história retratada no filme Desierto, em campanha de lançamento na ocasião, no qual ele interpreta Moises, um homem que está tentando passar do México ao território de seu poderoso vizinho do norte, junto com outras pessoas.
Pobre Bernal! Mal sabia que Trump seria eleito naquele ano. Pior ainda: voltaria a sê-lo em 2024 e, sem dúvida, sua hostilidade aos imigrantes foi um dos motivos que levou uma enormidade de pessoas a apoiar sua candidatura em ambas as ocasiões.
Não deveria ser assim - afinal, migrar faz parte da natureza -, mas, na conformação contemporânea, a maioria dos migrantes (e refiro-me aqui ao tipo predominante, o pobre, que acredita numa vida com menos privações materiais e mais segurança noutro lugar) se verá cercada de adversidades onde quer que tente ir nesse mundo.
A situação do migrante é exemplar para se pensar a questão dos privilégios. O romance O engate, de Nadine Gordimer, publicado em 2001 ¹, retrata bem essa condição. Numa grande cidade da África do Sul (imagina-se Joanesburgo), Julie Summers leva seu carro com defeito a uma oficina e acaba conhecendo Abdu (o nome que ele usa ao se apresentar). Não poderiam ser mais diferentes uma do outro: moça branca, filha de um homem rico ligado ao mercado financeiro, embora ela procure se distanciar do pai e de seu círculo de abastança, enquanto ele é um estrangeiro, árabe de pele escura, em situação irregular no país, vivendo de favor num quartinho no mesmo local onde trabalha. O futuro do casal é impactado pela deportação de Abdu. Julie decide segui-lo no retorno à terra natal, uma nação cujo nome nunca é citado no livro (é possível imaginar algum lugar nas grandes áreas desérticas do Oriente Médio: o Iêmen, talvez?).
O romance trata de deslocamentos - tanto geográficos quanto metafóricos. Fala de cisão e encontro; inadaptação e acolhida. Expõe também a irrefreável ânsia em escapar da sina de penúria que persegue muitos daqueles habitantes situados na periferia da periferia do capitalismo. Em certo momento, já em seu povoado, Abdu (cujo nome na verdade é Ibrahim) constata:
"Mundo é o deles. Os donos são eles. Dirigido por computadores, telecomunicações - veja só isto aqui [aponta a revista Newsweek que tem nas mãos] - , o Ocidente, eles são donos de noventa e um por cento. Lá de onde você [Julie] vem - a África inteira tem apenas dois por cento e é no seu país que está a maior parte. Este aqui? - nem o suficiente para um dígito. Deserto. Se você quer estar no mundo, a única maneira é conseguir que o que você chama de mundo cristão o deixe entrar".
Gordimer não optou pelo caminho mais fácil, tentando forçar um sentimento de empatia irrestrito no leitor, pois decidiu não revestir Abdu/Ibrahim com um manto de magnanimidade (a personagem que mais me interessou na narrativa, contudo, foi Maryam, a cunhada de Julie). O árabe, na volta um tanto melancólica ao país de origem, só consegue pensar em cruzar fronteiras distantes mais uma vez. Entretanto,
"O que fora suficiente antes, quando conseguira obter algum tipo de visto dúbio de entrada, talvez não sirva - não serve - agora; os símbolos humanitários nacionais equivalentes à Dama Com a Tocha Erguida, assim como a própria, não dão mais as boas-vindas e usam a Luz para revistar cegamente cada candidato, em busca de possíveis conexões com o terrorismo internacional - gente lutando as próprias batalhas ideológicas em solo alheio ou levando nos fluidos do corpo a doença mortífera mais recente. Este país que o reivindica pelo nascimento, pelas feições e pela cor, pela língua e a Fé que teve que afirmar nos formulários, embora não saiba se o filho ainda tem a Crença da mãe - este país ocupa lugar de destaque entre aqueles de onde saem imigrantes indesejáveis".
Sua mulher não teria esse problema: "era o tipo certo de estrangeiro. Alguém que pertencia a uma categoria internacionalmente aceitável de origem".
Num dos primeiros capítulos do livro, Julie e Abdu vão a um almoço na residência do pai dela. O principal motivo da festividade é marcar a partida de um casal de amigos para a Austrália.
" 'Relocate', dizem eles. O eufemismo atual para levantar âncora e partir para outro canto, seja por coação da pobreza ou da política, seja por ambição e convicção de que há uma vida ainda mais privilegiada, longe dos forcados e das AK-47 dos pobres rebelados, longe das pistolas dos criminosos. Não se trata de desempacotar mobília em novo endereço. Algumas das definições do dicionário revelam o anseio inexprimível que não pode ser explicado por ambição, privilégio nem mesmo pelo temor dos outros".[...]"Uma despedida é também uma celebração da imigração, como solução humana. Ninguém aqui se lembra de que essa não é a primeira vez. [...] Gerações enterraram essa sua categoria junto com os avós, mas todos eles são imigrantes por ascendência".
O árabe em situação irregular - nesse momento da história, não imediatamente preocupado com o risco da deportação - fica impressionado com as mostras de acumulação de dinheiro do pai de Julie e seus parças. Ela, por seu turno, sente-se desconfortável, refletindo sobre aquele pequeno círculo privilegiado: "O festejado casal está prestes a se tornar um casal de imigrantes. Sentada entre os convidados, Julie os vê como aqueles que - o tipo de gente que circula na roda do pai - podem se mudar pelo mundo afora, bem-vindos em toda parte, o quanto quiserem, ao passo que alguém tem de viver disfarçado de mecânico sem nome"
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Antes de encerrar, queria incluir uma observação feita por Nadine Gordimer numa entrevista dada 20 anos atrás (disponível na íntegra aqui). Não está diretamente relacionada ao livro que acabamos de discutir, mas como vai ao encontro de algumas reflexões que constantemente me acompanham, resolvi incluir nesta postagem.
A autora sul-africana era conhecida como uma escritora política (ou seja, alguém que fazia questão de tematizar problemas sociais de nosso tempo; por exemplo, o apartheid em seu país natal), mas não concordava que sua obra fosse uma espécie de ensaio sociológico travestido de ficção literária (até porque ela própria admitia que nunca foi muito adepta da chamada pesquisa na hora de compor um romance).
Pensando em qual era seu propósito ao escrever, Gordimer diz na entrevista: "Para mim pessoalmente - não sei dos outros -, é explicar realmente o mistério da vida e o mistério da vida inclui, é claro, o pessoal, o político, as forças que nos fazem ser o que somos, enquanto existe uma força que vem de dentro lutando para fazer de nós uma outra coisa".
E faz questão de complementar logo a seguir: "Devo dizer, nesse assunto, que sou ateia. Talvez se eu tivesse uma religião então eu pensaria que havia resposta para o mistério da vida, mas, como ateia e com toda a humildade, sei que não há religião que consiga me dar essa resposta".
Evidentemente, a escritora não está se referindo ao mistério de toda a vida, como uma pergunta a ser respondida, quem sabe um dia, pela biologia ou pela bioquímica: ela refere-se à complexidade da vida humana, que envolve a relação do indivíduo (e sua consciência) com a sociedade e vice-versa, mas também o inconsciente, além de nossas pulsões e nossos instintos enquanto organismos, e de como lidamos com tudo isso, tentando aplicar nexo e estrutura onde é realizável.
É plenamente satisfatório e arrebatador, mesmo com a impossibilidade de se chegar a conclusões definitivas. pensar e imaginar a partir desse mistério, tal como ele se apresenta para nós, sem qualquer necessidade de invocar uma explicação religiosa. Aqueles que acreditam em divindades ou poderes sobrenaturais não são os únicos com direito a se maravilhar diante do mistério.
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BG de Hoje
Minha atual obsessão musical é a guitarrista/compositora/cantora SAMANTHA FISH (no vídeo abaixo, interpretando Can Ya Handle The Heat?, do recentíssimo álbum Paper Doll )
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