sexta-feira, 23 de maio de 2025

O alçapão do empreendedorismo (I)

 

"O empreendedorismo é uma forma mistificadora que imagina poder eliminar o desemprego, em uma sociedade que é incapaz de preservar trabalho digno com direitos. E, como essas novas modalidades de trabalho são deprimentes, a mistificação torna-se o remédio que só fará alimentar a doença".

Ricardo Antunes, sociólogo e professor da Unicamp, em entrevista para o UOL (14/09/2019)



No ano passado, quatro acontecimentos, principalmente, serviram para solidificar ainda mais meu pessimismo.

Na esfera internacional, a continuidade do genocídio em Gaza. O massacre cruel dos palestinos sendo testemunhado pelo planeta inteiro e, pelo visto, nada conseguirá interrompê-lo. Seja qual for nosso caminho evolutivo, a humanidade, ao que parece, será sempre bestial.

As outras três ocorrências se deram aqui no Brasil mesmo.

Primeiramente, as acusações de assédio sexual contra o advogado e professor universitário Silvio Almeida. O ex-ministro do governo Lula, naturalmente, tem todo o direito à ampla defesa e, até onde sei, tudo ainda está na fase de inquérito (portanto, bem longe de uma condenação judicial), mas senti esse incidente como se fosse um murro na minha própria cara. Uma liderança negra, de esquerda (e em projeção), tendo, supostamente, conduta tão execrável - tal situação, sendo eu próprio um homem negro e de esquerda, me fez sentir um mal-estar como se tivesse sido pessoalmente ultrajado.  

Depois veio a a publi do Átila Iamarino para a Shell. O irritante termo publi pode dar a entender que se trata de uma coisinha insignificante. E não é. Um cara que se destacou defendendo a ciência no combate à desinformação aceita dinheiro de uma petrolífera para... não informar apropriadamente, pois faz vista grossa para os danos ambientais causados pela indústria do petróleo (sendo a Shell uma das gigantes do setor), danos estes fartamente comprovados por - ora, vejam! - cientistas. Como disse o professor Alexandre Costa, da Universidade Estadual do Ceará, "o prestígio de Atila como divulgador científico — que ganhou projeção na pandemia de covid-19 — foi instrumentalizado pela petroquímica, que tem interesse em chegar a seu público". Tudo mundo tem contas pra pagar: OK, eu entendo isso. Quem está podendo dispensar um dinheiro a mais, não é mesmo? Mas, cáspita, a grana tinha que vir de uma corporação que está se lixando para as condições futuras da vida humana na Terra?

Por fim, a absorção do discurso empreendedorista pelo (então) candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos. Sejamos francos: antes mesmo do início da disputa, quase todo mundo (inclusive colegas de partido e outros membros da coligação) sabia que seria bastante improvável a vitória do deputado do PSOL, mesmo que ele até tivesse chegado a aparecer como líder das intenções de voto em algumas pesquisas. Portanto, era preciso aproveitar a campanha e apresentar um programa que desafiasse os demais, antagônico na real, colocando as cartas na mesa. O que vi da campanha de Boulos foi decepcionante: tentando descolar-se da pecha de radical (algo visto como defeito pela maioria do eleitorado, ainda mais num dos fulcros do conservadorismo brasileiro), apresentou-se insípido e sem fibra, apenas reagindo aos demais candidatos, principalmente o inqualificável Pablo Marçal, um dos propagandistas do empreendedorismo. Ter aceitado participar de uma  live  com Marçal, aliás, após toda a delinquência promovida pelo  ex-coach-atual-não-sei-o-quê,  foi de amargar, demonstrando, a propósito, como parte da esquerda encontra-se perdida no atual momento político, acuada em meio a tal "polarização" (uma assombração que ninguém se esforça em conceituar). A meu ver, a hora é de mais dissenso (portanto, de mais radicalidade na defesa de determinadas pautas e reivindicações) e menos contemporização (neste ponto, estou em concordância com Vladimir Safatle, Glauber Braga e outros). Já que se fala tanto em "polarização", polarizemos de verdade. Porém, o objetivo dessa esquerda avessa a conflitos, ao que parece, passou a ser apenas ocupar cargos nas instituições de Estado, vencendo eleições ocasionalmente, mas abdicando de mobilizar e instrumentalizar a população para melhor compreender e enfrentar a exploração sistêmica do capitalismo.

Como ter ânimo? 

Por ora, falemos do empreendedorismo

. . . . . . .

O(a) eventual leitor(a) pode estar se perguntando:  mas que mal há em começar um negócio por conta própria ou tornar-se um prestador de serviço via aplicativo?

Vou começar a apresentar na postagem de hoje o que a cantilena do empreendedorismo prefere manter abaixo da superfície.

Comecemos com uma definição dada por uma entidade de apoio aos empreendedores. Vou reproduzir aqui o que está no site do SEBRAE de Santa Catarina (encontrei assim que iniciei uma busca no Google):

"Empreendedorismo é a capacidade que uma pessoa tem de identificar problemas e oportunidades, desenvolver soluções e investir recursos na criação de algo positivo para a sociedade. Pode ser um negócio, um projeto ou mesmo um movimento que gere mudanças reais e impacto no cotidiano das pessoas.

Segundo o teórico Joseph Schumpeter, empreendedorismo está diretamente associado à inovação. Para Schumpeter, o empreendedor é o responsável pela realização de novas combinações.

A introdução de um novo bem, a criação de um método de produção ou comercialização e até a abertura de novos mercados, são algumas atividades comuns do empreendedorismo. Isso significa que 'a essência do empreendedorismo está na percepção e no aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios' ".   

Caramba! Isso é uma maravilha, não!?

Bem... Muita calma nessa hora.

A definição acima diz que se trata de uma  capacidade. Depreendo então não ser algo inerente a qualquer indivíduo, pois alguns (ou mesmo muitos) poderiam ser  incapazes  nesse terreno. Quem a tem, ainda de acordo com o trecho acima, "desenvolve soluções e investe recursos em algo positivo para a sociedade". Fico me perguntando se os sujeitos que criaram o cigarro eletrônico, a plataforma Discord, cada uma das centenas de bets ou aqueles famigerados (e altamente poluentes) copos da Starbucks - pessoas com espírito empreendedor, não? - fizeram algo  positivo  para a sociedade, mas, no momento, quero me concentrar no tal investir recursos.

Não creio ser nenhum absurdo dizer que  recursos  (financeiros, sejamos diretos) não estão disponíveis para todos, a qualquer momento e em qualquer lugar. Essa circunstância, penso eu, é uma das que mais depõe contra o empreendedorismo.

Imaginemos duas situações:

➧ O indivíduo 1 decide criar uma loja virtual/tele-entrega de algum produto. Não tem capital próprio suficiente para iniciar o negócio, mas conta com o apoio da mãe, do pai, de um tio rico que decide colocar dinheiro na parada ou, graças às redes de contato (o tal  networking ), nas quais se acham indivíduos endinheirados que ele conheceu devido às relações da família, consegue empréstimos sem muita dificuldade e em ótimas condições. A coisa demora um pouco a engrenar, mas nada que aflija esse indivíduo, pois ele tem uma fonte de renda segura (graças ao emprego na firma de um parente, que não exige pontualidade nem sequer assiduidade) até que o negócio comece a dar lucro. Caso não dê certo, porém, não é o fim do mundo: os prejuízos não resultam em perda de patrimônio e quando "o mercado se reaquecer", tenta-se uma outra ideia e recorrendo-se aos mesmos financiadores.

➧ O indivíduo 2 decide vender compotas artesanais: a esposa é ótima doceira e, como ele está desempregado, pode significar uma nova forma de fazer renda. O primeiro passo, pensa ele, é obter as embalagens. Que tal recolher aqueles vidros de palmito ou de azeitona usados? Não é simples: várias pessoas não fazem separação para reciclagem; além disso, é preciso considerar que os catadores também estão em busca desse tipo de material e são muito mais experientes nessa coleta. Decide então comprar as embalagens; além disso, há o custo do vasilhame para preparação das compotas, a compra das frutas, açúcar, etc. As solicitações de empréstimo nos bancos são recusadas (histórico de crédito ruim, alegam os gerentes). Não há membros da família ou conhecidos com dinheiro guardado a quem possa recorrer. A solução é vender o carro para levantar o capital: as crianças podem caminhar até a escola - é até mais saudável - e a esposa pode voltar a usar o transporte coletivo para chegar ao local onde ela trabalha (de 8h às 17h). À noite, a mulher, numa dupla jornada, adianta o que pode ser adiantado. Durante o dia, o marido finaliza os produtos. Sua tarefa principal, entretanto, é visitar o comércio local e tentar colocar sua produção nas prateleiras, além de procurar vender através do "Zap". Espalha cartazes e capricha no boca a boca. Passado um tempo, as vendas não são nem perto do esperado. Não consegue recuperar a grana do carro vendido. Endividou-se para fazer os cartazes e os rótulos das embalagens. Continua desempregado e sem uma fonte de renda regular.

O(a) eventual leitor(a) deve ter notado, espero, que, nas duas situações hipotéticas, não exemplifiquei com nenhuma invenção espetacular ou uma ideia inovadora pica das galáxias. O motivo? Não são ocorrências comuns: na imensa maioria das vezes, quem decide abrir um novo negócio tenta o mais corriqueiro: comércio/vendas ou prestação de serviço e, sobretudo  no início  da montagem do negócio, ter ou não recursos financeiros suficientes faz toda a diferença no sucesso da empreitada. Espero que os dois exemplos acima tenham ajudado a ilustrar bem esse ponto.

Joseph Schumpeter é citado na definição acima. Nunca li diretamente qualquer coisa escrita pelo autor e seria desonesto criticar só por criticar. Devo confessar, entretanto, que fico bastante tentado a descer a lenha nele, pois, até onde sei, na sua defesa calorosa do capitalismo (e do empreendedorismo), o economista austríaco não levava em conta a voracidade do poder concentrador das corporações e as discrepâncias entre os vários agentes econômicos, inviabilizando a competitividade realmente justa no mercado. Dessa forma, o "aproveitamento das novas oportunidades no âmbito dos negócios" é algo bem mais restritivo do que propagandeiam os arautos do empreendedorismo. 

Penso ser inevitável, nessa altura, empregar a palavra  ideologia  (infelizmente, eventual leitor(a), não vai dar para realizar uma ampla conceituação, nem distinguir os usos do vocábulo - por limitação intelectual do blogueiro, sem dúvida, mas sobretudo para não tornar este texto ainda mais cansativo). É bom deixar claro, contudo, desde já, que não concebo o termo negativamente: ser ideológico não implica necessariamente algo prejudicial ou nocivo. Ideologias circulam pela sociedade, entram em disputa muitas vezes, defendidas ou atacadas, sobrevivem ou desaparecem, são adotadas por um grande número de pessoas ou ficam reduzidas a uns poucos grupos. Sou adepto de determinada(s) ideologia(s) ao mesmo tempo em que me oponho a outra(s).

Pois bem. O modo como o empreendedorismo vem sendo difundido e abordado apresenta, na maioria das ocasiões, características do discurso ideológico. 

E esse discurso empreendedorista, a meu ver, precisa ser rebatido.

Continuarei a fazê-lo na próxima postagem, quando pretendo mostrar que toda essa conversa é pra nos convencer de que a única alternativa é o cada um por si.

                            

BG de Hoje

É embaraçoso que nenhuma canção de BOB DYLAN tenha aparecido nessa seção em mais de 15 anos de blog. Tento me redimir hoje com Maggie's Farm, canção que ganhou uma revitalização com o recente filme Um completo desconhecido. Há, junto à crítica, uma interpretação, bastante plausível, de que a canção foi uma resposta do artista Dylan ao pessoal da indústria da música. Há outra, contudo, mais direta e mais do agrado da maioria dos ouvintes, penso eu, que vê nela um libelo contra a exploração do trabalho (é esse entendimento que tiveram, por exemplo, os caras do Rage Against The Machine ao gravarem aquela versão porrada no álbum Renegades).


quinta-feira, 15 de maio de 2025

Falou e disse...

 "Como num círculo vicioso, havia sempre um momento em que o pensamento civilizatório sucumbia a um processo entrópico, bombardeado em seus pontos mais frágeis, em suas dúvidas e contradições, e já não conseguia reagir às crises. Nesse momento, a violência tomava a dianteira como única resposta possível. E, para defender a fragilidade da nação, passavam a recorrer a expedientes típicos de regimes fascistas. O mesmo raciocínio podia ser aplicado a situações mais simples, circunscritas a universos particulares que serviam de microcosmos. O fundamental,  em todo caso, é que havia sempre um momento em que a razão fraquejava e desmoronava, bombardeada por todos os lados no que tinha de mais acabado: a dúvida, a reflexão, a hesitação. Nesses momentos críticos, a razão deixava de dar conta das contradições que trazia em si e que tinham se tornado cada vez mais visíveis e evidentes conforme ela também  se aprimorava e se afastava da barbárie, até ficar totalmente vulnerável ao oportunismo da brutalidade e às investidas das imposturas, dos sofismas e da burrice, como um corpo indefeso de tão puro. Na barbárie, não há dúvida nem hesitação, segue-se o caminho mais curto". *

* Um dos pontos da tese do Rato, protagonista do romance Simpatia pelo demônio, de Bernardo CARVALHO (Editora Companhia das Letras, 2016 - p. 31-32)

terça-feira, 6 de maio de 2025

Deslocados no mundo

 
 
Em entrevista ao site de notícias Daily Beast, publicada numa versão condensada em 8 de janeiro de 2016, o ator mexicano Gael Garcia Bernal, na época preocupado com a possibilidade de Donald Trump ser eleito presidente dos EUA, deixou sua opinião sobre o impulso que leva seres humanos a buscar outros lugares onde viver:  
 
"Migration is as natural as breathing, as eating, as sleeping. It is part of life, part of nature. So we have to find a way of establishing a proper kind of scenario for modern migration to exist. And when I say 'we,' I mean the world. We need to find ways of making that migration not forced".  [tradução aproximada: "Migração é tão natural quanto respirar, quanto comer, quanto dormir. É parte da vida, parte da natureza. Então nós temos que encontrar um modo de estabelecer um tipo de cenário apropriado para a migração moderna existir. E quando eu digo 'nós', quero dizer o mundo. Nós precisamos encontrar modos de fazer essa migração não forçada"]
 
O entrevistador havia perguntado por que, na opinião do artista, seria importante contar a história retratada no filme Desierto, em campanha de lançamento na ocasião, no qual ele interpreta Moises, um homem que está tentando passar do México ao território de seu poderoso vizinho do norte, junto com outras pessoas.
 
Pobre Bernal! Mal sabia que Trump seria eleito naquele ano. Pior ainda: voltaria a sê-lo em 2024 e, sem dúvida, sua hostilidade aos imigrantes foi um dos motivos que levou uma enormidade de pessoas a apoiar sua candidatura em ambas as ocasiões.

Não deveria ser assim - afinal, migrar faz parte da natureza -, mas, na conformação contemporânea, a maioria dos migrantes (e refiro-me aqui ao tipo predominante, o pobre, que acredita numa vida com menos privações materiais e mais segurança noutro lugar) se verá cercada de adversidades onde quer que tente ir nesse mundo.  

A situação do migrante é exemplar para se pensar a questão dos privilégios. O romance O engate, de Nadine Gordimer, publicado em 2001 ¹, retrata bem essa condição. Numa grande cidade da África do Sul (imagina-se Joanesburgo), Julie Summers leva seu carro com defeito a uma oficina e acaba conhecendo Abdu (o nome que ele usa ao se apresentar). Não poderiam ser mais diferentes uma do outro: moça branca, filha de um homem rico ligado ao mercado financeiro, embora ela procure se distanciar do pai e de seu círculo de abastança, enquanto ele é um estrangeiro, árabe de pele escura, em situação irregular no país, vivendo de favor num quartinho no mesmo local onde trabalha. O futuro do casal é impactado pela deportação de Abdu. Julie decide segui-lo no retorno à terra natal, uma nação cujo nome nunca é citado no livro (é possível imaginar algum lugar nas grandes áreas desérticas do Oriente Médio: o Iêmen, talvez?).
 
O romance trata de deslocamentos - tanto geográficos quanto metafóricos. Fala de cisão e encontro; inadaptação e acolhida. Expõe também a irrefreável ânsia em escapar da sina de penúria que persegue muitos daqueles habitantes situados na periferia da periferia do capitalismo. Em certo momento, já em seu povoado, Abdu (cujo nome na verdade é Ibrahim) constata:
 
"Mundo é o deles. Os donos são eles. Dirigido por computadores, telecomunicações - veja só isto aqui  [aponta a revista  Newsweek  que tem nas mãos] - , o Ocidente, eles são donos de noventa e um por cento. Lá de onde você  [Julie]  vem - a África inteira tem apenas dois por cento e é no seu país que está a maior parte. Este aqui? - nem o suficiente para um dígito. Deserto. Se você quer estar no mundo, a única maneira é conseguir que o que você chama de mundo cristão o deixe entrar".
 
Gordimer não optou pelo caminho mais fácil, tentando forçar um sentimento de empatia irrestrito no leitor, pois decidiu não revestir Abdu/Ibrahim com um manto de magnanimidade (a personagem que mais me interessou na narrativa, contudo, foi Maryam, a cunhada de Julie). O árabe, na volta um tanto melancólica ao país de origem, só consegue pensar em cruzar fronteiras distantes mais uma vez. Entretanto,
 
"O que fora suficiente antes, quando conseguira obter algum tipo de visto dúbio de entrada, talvez não sirva - não serve - agora; os símbolos humanitários nacionais equivalentes à Dama Com a Tocha Erguida, assim como a própria, não dão mais as boas-vindas e usam a Luz para revistar cegamente cada candidato, em busca de possíveis conexões com o terrorismo internacional - gente lutando as próprias batalhas ideológicas em solo alheio ou levando nos fluidos do corpo a doença mortífera mais recente. Este país que o reivindica pelo nascimento, pelas feições e pela cor, pela língua e a Fé que teve que afirmar nos formulários, embora não saiba se o filho ainda tem a Crença da mãe - este país ocupa lugar de destaque entre aqueles de onde saem imigrantes indesejáveis".
 
Sua mulher não teria esse problema: "era o tipo certo de estrangeiro. Alguém que pertencia a uma categoria internacionalmente aceitável de origem".
 
Num dos primeiros capítulos do livro, Julie e Abdu vão a um almoço na residência do pai dela. O principal motivo da festividade é marcar a partida de um casal de amigos para a Austrália.
 
" 'Relocate', dizem eles. O eufemismo atual para levantar âncora e partir para outro canto, seja por coação da pobreza ou da política, seja por ambição e convicção de que há uma vida ainda mais privilegiada, longe dos forcados e das AK-47 dos pobres rebelados, longe das pistolas dos criminosos. Não se trata de desempacotar mobília em novo endereço. Algumas das definições do dicionário revelam o anseio inexprimível que não pode ser explicado por ambição, privilégio nem mesmo pelo temor dos outros".
 [...]
"Uma despedida é também uma celebração da imigração, como solução humana. Ninguém aqui se lembra de que essa não é a primeira vez.  [...]  Gerações enterraram essa sua categoria junto com os avós, mas todos eles são imigrantes por ascendência". 
 
O árabe em situação irregular - nesse momento da história, não imediatamente preocupado com o risco da deportação - fica impressionado com as mostras de acumulação de dinheiro do pai de Julie e seus  parças.  Ela, por seu turno, sente-se desconfortável, refletindo sobre aquele pequeno círculo privilegiado: "O festejado casal está prestes a se tornar um casal de imigrantes. Sentada entre os convidados, Julie os vê como aqueles que - o tipo de gente que circula na roda do pai - podem se mudar pelo mundo afora, bem-vindos em toda parte, o quanto quiserem, ao passo que alguém tem de viver disfarçado de mecânico sem nome"

. . . . . . . 



Antes de encerrar, queria incluir uma observação feita por Nadine Gordimer numa entrevista dada 20 anos atrás (disponível na íntegra aqui). Não está diretamente relacionada ao livro que acabamos de discutir, mas como vai ao encontro de algumas reflexões que constantemente me acompanham, resolvi incluir nesta postagem.

A autora sul-africana era conhecida como uma escritora política (ou seja, alguém que fazia questão de tematizar problemas sociais de nosso tempo; por exemplo, o apartheid  em seu país natal), mas não concordava que sua obra fosse uma espécie de ensaio sociológico travestido de ficção literária (até porque ela própria admitia que nunca foi muito adepta da chamada pesquisa na hora de compor um romance). 
 
Pensando em qual era seu propósito ao escrever, Gordimer diz na entrevista: "Para mim pessoalmente - não sei dos outros -, é explicar realmente o mistério da vida e o mistério da vida inclui, é claro, o pessoal, o político, as forças que nos fazem ser o que somos, enquanto existe uma força que vem de dentro lutando para fazer de nós uma outra coisa". 

E faz questão de complementar logo a seguir: "Devo dizer, nesse assunto, que sou ateia. Talvez se eu tivesse uma religião então eu pensaria que havia resposta para o mistério da vida, mas, como ateia e com toda a humildade, sei que não há religião que consiga me dar essa resposta".
 
Evidentemente, a escritora não está se referindo ao mistério de toda a vida, como uma pergunta a ser respondida, quem sabe um dia, pela biologia ou pela bioquímica: ela refere-se à complexidade da vida humana, que envolve a relação do indivíduo (e sua consciência) com a sociedade e vice-versa, mas também o inconsciente, além de nossas pulsões e nossos instintos enquanto organismos, e de como lidamos com tudo isso, tentando aplicar nexo e estrutura onde é realizável.
 
É plenamente satisfatório e arrebatador, mesmo com a impossibilidade de se chegar a conclusões definitivas. pensar e imaginar a partir desse mistério, tal como ele se apresenta para nós, sem qualquer necessidade de invocar uma explicação religiosa. Aqueles que acreditam em divindades ou poderes sobrenaturais não são os únicos com direito a se maravilhar diante do mistério.
 
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¹ Para essa postagem, estou me valendo da tradução de Beth Vieira (Editora Companhia das Letras, 2004)

 

BG de Hoje

Minha atual obsessão musical é a guitarrista/compositora/cantora SAMANTHA FISH (no vídeo abaixo, interpretando  Can Ya Handle The Heat?,  do recentíssimo álbum Paper Doll )